ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

1.11.17

A PROCISSÃO DOS OSSOS, de VIEIRA FAZENDA

TEXTO EXTRAÍDO DA OBRA ANTIQUALHAS E MEMÓRIAS DO RIO DE JANEIRO DE VIEIRA FAZENDA (VOLUME 1)

Procissão dos Encapuzados, desenho de Manuel de Araújo Porto-Alegre (fonte: Biblioteca Nacional Digital)

Começavam, de véspera, os preparativos para a anual comemoração dos mortos, ordenada pela Igreja Católica.

No dia 1 de novembro, depois do meio-dia, dobravam lugubremente a finados todos os templos e capelas desta cidade. E era tal o efeito aterrador desse triste badalar de sinos, que em 1850, por ocasião da primeira epidemia de febre amarela, a polícia o proibiu. Ao entardecer abriam-se de par em par as portas da velha igreja da Misericórdia para, terminadas às Vésperas, deixar passar longo, imponente e significativo cortejo: era a Irmandade, que revestida de seus amplos e negros balandraus [=veste com capuz e mangas largas], ia, em nome de Cristo e da Caridade, disputar à voragem dos urubus e dos cães os restos mortais dos justiçados pela implacável e muitas vezes falível justiça dos homens. 

Resumindo as singelas expressões do Capítulo XXXVII do Compromisso Do modo com que se hão de ir buscar as ossadas dos que padeceram por justiça, tentaremos descrever a chamada procissão dos ossos [o autor refere-se a um capítulo do Compromisso da Irmandade da Misericórdia no qual se baseia para sua descrição da macabra procissão].

Abria o préstito o irmão oficial da vara com um homem do azul (empregado subalterno) tangendo a campainha.

Em seguida ia a Bandeira da Misericórdia conduzida por um irmão nobre entre dois tocheiros [=castiçal para tocha] levados por um irmão nobre e outro oficial. Após desfilava a Irmandade posta em procissão sem distinção alguma, nem precedência de lugar; e pelo meio ia o mordomo da vara, nobre, governando entre a irmandade, e em lugar conveniente ia a primeira tumba carregada pelos homens ordinários com quatro tocheiros às ilhargas [=ao lado], levados pelos homens que com eles andam nos enterramentos.

Diante dessa tumba caminhava o mordomo dos presos, oficial, levando a competente vara. Seguia-se a segunda tumba conduzida da mesma maneira que a outra, indo diante o mordomo nobre dos presos com a sua vara. No couce [=retaguarda] da procissão caminhavam os capelães da casa com suas sobrepelizes, e no remate deles o crucifixo, levado pelo escrivão da mesa acompanhado por 8 tocheiros. Atrás do crucifixo ia o provedor.

Chegado o préstito à forca, eram recolhidos os ossos nas tumbas, e a procissão voltava na mesma ordem, passando, porém, o provedor para diante do crucifixo, e indo após os capelães encomendando os defuntos, e em último lugar as duas tumbas com os dois mordomos dos presos.

Dentro da igreja eram as tumbas depositadas e, sentados os irmãos, havia pregação, sendo no dia seguinte enterrados os ossos no cemitério da Misericórdia, junto ao Morro do Castelo, na parte posterior do hoje Hospital Velho. Quando o dia de Todos os Santos caía em sábado, a procissão era feita no domingo.

Qual é a origem desta cerimônia religiosa, que de Portugal passou ao Brasil?

Os antigos juízes distinguiam duas espécies de mortes a atroz e a cruel; na primeira, o condenado depois de enforcado era decapitado, e a cabeça ficava exposta no patíbulo; outras vezes era o cadáver esquartejado, podendo também ser queimado e aos ventos lançadas as cinzas! Na segunda, o réu antes de morrer era atormentado, atenazado; podiam ser seus membros quebrados com massas de ferro, etc.

Da primeira temos exemplo com Tiradentes, da segunda com os Távoras! [ver "Processo dos Távoras" na Wikipedia]

Sempre, porém, nos intrigaram as duas fórmulas das sentenças de pena última: morte natural PARA SEMPRE e morte natural.

Deu-nos a chave do enigma uma nota das Ordenações Filipinas comentadas pelo erudito Cândido Mendes, que para explicar tais expressões encontrou fundamento em uma memória do bacharel João José Miguel Ferreira da Silva Amaral. Por aí podemos ter a significação da Procissão dos Ossos.

Os corpos dos condenados à morte natural para sempre ficavam suspensos da forca, e no dia 1 de novembro iam processionalmente os irmãos da Misericórdia buscá-los para os enterrar em lugar sagrado.

Eram passíveis dessa pena os grandes criminosos, contra os quais havia circunstâncias agravantes; os condenados ficaram expostos para exemplo e escarmento [=punição]. Disso nos dá prova o seguinte alvará de d. Manuel em data de 2 de novembro de 1498:

“Nós El-Rei fazemos saber a quantos este Nosso Alvará virem que a Nós praz havendo assim por serviço de Deus e Nosso que a Confraria que agora é feita em esta Cidade, possa tirar os justiçados da forca desta Cidade e ossadas deles, por dia de Todos os Santos de cada um ano e soterrá-los no Cemitério da dita Confraria, isto para sempre em cada ano etc.”

Os que deviam sofrer somente morte natural não tinham por patíbulo a forca de Santa Bárbara, mas o Pelourinho da Ribeira, e os restos deles podiam ser inumados no mesmo dia. Para esse mister, a Misericórdia de Lisboa havia requerido a construção de uma forca levadiça; mas o rei, por outro alvará de 2 de novembro de 1498, declarou: “que se não faça a dita forca levadiça, e os que assim houverem de padecer serão enforcados no Pelourinho.”

Pensamos fossem feitas, até certo ponto, no Brasil, as execuções da pena de morte por esses dois modos, e que entre nós houvesse anualmente a procissão dos ossos. Caiu ela em desuso, quando, com o progresso dos tempos, foram a pouco e pouco sendo abolidos os rigores e crueldades da antiga legislação, principalmente com o decreto do príncipe regente d. João, firmado em 12 de dezembro de 1801.

Já dissera o grande Alexandre de Gusmão: as leis são feitas mais para intimidar do que para punir. E em tempos anteriores um governador-geral pedia ao rei certa benevolência para os criminosos do Brasil: “esta terra não se deve, nem pode regular pelas leis e estilos do Reino; se Vossa Alteza não for muito fácil em perdoar, não terá gente no Brasil.”

Era assim que em santa e gloriosa missão a Misericórdia, fazendo a solene procissão dos ossos, dava prova eloquente de piedade cristã e procurava obrigar aos demais fiéis a se lembrarem dos defuntos – ainda que sejam tão desamparados como estes (os justiçados) parecem.

Não vem longe o dia de finados, e é justo lembrar mais essa feição simpática do sublime instituto, que, tênue arbusto no começo desta cidade, se tornou copada árvore, à cuja sombra, durante três séculos, se tem abrigado milhares e milhares de filhos do desamparo e do infortúnio.

Recordar tais antiqualhas é concorrer com pequeno contingente para a história econômica dos nossos usos e costumes, a qual está ainda por fazer.


15 de outubro de 1901.

Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente artigo, como de costume. E, como sempre, aprendi algumas palavras novas. Mas o que mais me chamou a atenção foi o pedido de clemência do tal governador-geral, advertindo que se o Rei "não for muito fácil em perdoar, não terá gente no Brasil".